Um padre em conflito com a própria fé, após um estranho o colocar em dúvida sobre a natureza divina dela. Essa era a premissa de Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1963), uma das obras mais celebradas de Ingmar Bergman, que anos atrás Paul Schrader revisionou em First Reformed (2017). O filme sueco é um dos grandes exemplares a dialogar sobre o dilema da espiritualidade em oposição aos nossos sofrimentos carnais. Eis que agora surge o curioso título canadense The Righteous, com direção de Mark O'Brien (ator de Halt and Catch Fire e que pode ser visto em Blue Bayou, também do ano passado), e filmado em preto e branco que antes de conferir já me parecia ser uma grande homenagem à ele. Tendo sido bastante premiado nas edições passadas do Grimmfest e Fantasia Film Festival.
A dupla Henry Czerny e Mimi Kuzyk interpreta o casal Frederik e Ethel Mason, que acabam por passar por uma tragédia ao perder a filha, ainda criança. Frederik é um ex-padre que largou o santo posto quando acreditou ter encontrado o amor em Ethel, e agora sofrem um grande abalo na relação, ainda em processo de descobrimento sobre como lidarem com a morte de sua única cria, recebendo em casa o consolo de vizinhos e pessoas próximas. Eles vivem numa área de mata no que parece ser um pequeno vilarejo, como a civilização de aspecto inóspito no grande filme de Bergman. Uma noite surge um jovem estranho com o tornozelo machucado, que eles não esperavam ter de acolher na residência. Aaron (o próprio O'brien) se apresenta como um aventureiro azarado bastante agradável, cativando logo a afeição materna de Ethel, mas sua ida até Frederik tem um objetivo secreto que espera revelar-lhe em breve.
Aos 38 anos, Mark O'Brien que guarda uma semelhança indissociável ao norte-americano Evan Peters, em sua estréia na direção investe em trabalhar em cima do ar de tensão e mistério que envolve seus personagens, bastante preocupado em sustentar a dinâmica entre si e os atores. Apesar da premissa, ele que vem de uma família católica confessa não ter pensado em fazer deste um relato de contestamento de fé, mas ainda é um grande elemento que move o personagem de Czerny, que interpreta tão bem em seu martírio silencioso pelo tormento mental causado por lembranças do passado. Desde a escolha da fotografia monocromática, como não pensar que esta é uma ilustração da luta entre a luz e as trevas? Visualmente é menos bem planejado que um filme de Carl Thedor Dreyer, que admite ser também uma grande referência para sua realização, mas a cinematografia de Scott McClellan ainda é eficiente. Quem Tem Medo de Virginia Woof? (1966), é outro referencial que pode facilmente vir a passar pela mente dos telespectadores pela concentração no trio. A ligação dos protagonistas com Doris (Kate Corbett), é outro ponto que permite um momento de brilho nessa interação performática.
Com a bomba armada trazida por Aaron em forma de desafio e segredo, The Righteous se encaminha para um confronto final explosivo. E apesar de toda boa composição do diretor, ainda não é capaz de conter todas as ótimas ideias que tinha aqui, e diria que é muito por causa de ficar no meio termo em fazer disso uma luta espiritual mais aberta, algo que Bergman não tinha receio em representar. O horror vem em pequenas doses, muito como reflexo da aflição dramática em que está a família Mason, num geral é um produto estranho para o grande público digerir ou se interessar, tendo conseguido uma distribuição bastante pequena comercialmente. Mas há uma audácia interessante no que O'Brien propõe, o que para um diretor inicialmente é suficientemente marcante e faz deste um belo início para a sua carreira. E um exemplar independente chamativo.
The Righteous pode ser conferido aqui com legendas com tradução automática.
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