quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Pinóquio por Guillermo Del Toro (2022)


A véspera de Natal se aproxima, e não poderia deixar de falar do lançamento mais encantador, por oferecer coração para esta época tão estimada, e ao mesmo tempo tão "cristã" como... sim, Pinóquio por Guillermo Del Toro. O personagem de origem italiana, datada no século XIX, no livro de Carlo Collodi, tem ganhado diversas novas adaptações para as telas nos últimos três anos, como o live-action dirigido por Roberto Benigni, e há uns meses atrás, o encomendado pela Disney, dirigido por Robert Zemeckis; embora não as tenha conferido, a produção em stop-motion da Netflix em parceria com o diretor mexicano, poderia ser afirmada como a versão definitiva da história do menino de madeira.

Antes de mais nada, é preciso fazer a pergunta: por que Del Toro estaria tão interessado numa história para crianças? Ora, a resposta é a mais simples, aquela encontrada nos elementos mais explícitos dos seus grandes sucessos: o fascínio pelo mundo fantástico do imaginário infantil, e outra interligação importante, que deixarei no final do texto. Sempre houve muita paixão transmitida nos mundos mágicos que concebeu, tal como nos olhos brilhantes de uma criança sonhadora, e aqui adianto a resposta para tamanho sucesso do seu Pinóquio: ao contrário de máquinas multimilionárias de panfletagem de falsos sonhos, aventuras e lucros com brinquedos, não há rodeios na forma que Del Toro se dirige aos pequenos, apresentando uma jornada honestamente tão doce, como brutal. Contextualizado na Itália antes, e durante a Segunda Guerra Mundial, a tragédia demonstra ter os pés fincados na vida do mestre carpinteiro, Geppetto (David Bradley), quando um bombardeio incidental na igreja do povoado onde vive, vitimiza seu tão amado filho, Carlo (Gregory Mann).

A dor no ritual de luto, tão inconformado ao confrontar uma grande árvore na tempestade, o conecta na mesma noite com o clássico narrador, o Grilo Falante Sebastian (Ewan McGregor), e os espíritos da floresta, que o concedem o clamor de poder ter o filho de volta. Ao criar o boneco de madeira, a Fada Azul (Tilda Swinton) lhe dá o sopro de vida, enquanto o Grilo serve como testemunha de tamanho milagre mágico. Pinóquio (também dublado por Mann), é um menino de natureza impulsiva, pelo anseio de compreender o mundo ao redor, e receber o amor do pai. A tremenda admiração por ver uma criação de madeira falar, e andar como um ser humano, logo gera uma reação perplexa na comunidade do povoado, com fundamentos religiosos, e de preocupação pelas autoridades armadas. O que atrai a atenção do falsário apresentador de circo, Raposa (Christoph Waltz), e o líder oficial facista, Podestà (Ron Perlman), que o colocarão em apuros, o levando de encontro com a Morte (Swinton novamente).

A relação paternal com o carpinteiro segue sendo o grande vínculo narrativo, como uma bela lição sobre reaprender a amar, e dois arcos aumentam a experiência da já conhecida aventura de Pinóquio: A amizade conquistada de Candlewick (Finn Wolfhard), aspirante a fascista; e o laço com o macaco do explorador, também vítima da vigarice do dono, Spazzatura (Cate Blanchett). Assim como se inseriu dentro de um orfanato no cenário da Guerra Civil Espanhola em A Espinha do Diabo (2001), e na Segunda Guerra Mundial em Labirinto do Fauno (2006), a crítica ao fascismo de Del Toro para as forças italianas garante momentos nada ingênuos, onde o perigo da encenação com armas, se dirige diretamente a estratégia da propaganda militar e o dever de cumprimento nacionalista, responsáveis por levar milhões de jovens para uma marcha da morte.

Del Toro não estaria reinventando, mas sim, reaproveitando todos os indícios que estavam bastante nítidos na criação literária de Collodi, e que agora são mais que perceptíveis para mim na fase adulta, que apontam a fonte de crença bíblica. A começar por Geppetto, nome que seria o diminutivo de Giuseppe, José em italiano, e a extraordinária transposição na descrição visual de anjos na Fada Azul e a Morte (essa descoberta foi apontada pelo meu único leitor, Felipe). E também como não enxergar Pinóquio, em paralelo como o filho do divino, ao ser como um objeto de expiação para as apresentações do circo, que arrancaram o direito sobre sua própria imagem? A força emocional do filme no desfecho reside numa mensagem sobre o efeito da passagem do tempo, a finitude da vida, e aí está o reencontro do diretor 29 anos depois, com seu tema mais caro: A eternidade buscada pelo vendedor de antiguidades em Cronos, seu filme de estréia. Pinóquio é o grande retorno ao tema de origem que lançou o tão adorado diretor mexicano, ao dar a tão famosa fábula, a mais rica leitura mítica, unindo o confronto da religião com o horror da Guerra, e a contraposição da maldade humana com os grandes princípios adquiridos no amadurecimento dos personagens, no aconchego do amor nos mais próximos, enquanto esta vida durar.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Até os Ossos (2022)


À essa altura, desde a estréia no Festival de Veneza em Setembro, tudo que havia para ser falado sobre Até os Ossos/Bones & All foi discutido. O apontamento da leitura unilateral seria, inclusive, o ponto mais negativo do novo filme de Luca Guadagnino, adaptado do livro homônimo, da autora Camille DeAngelis. Se é verdade, ou não, nem estou interessado em prolongar a discussão.

Como a maioria das produções americanas, o mais interessante nesse road movie canibal, é o punhado de referências. Filmado pelos Estados de Kentucky, Ohio, Indiana e Nebraska, com ambientação nos anos 80, o encontro fatídico entre os jovens, Mauren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet), que compartilham em comum uma inexplicável fome por carne humana, assim como uma paixão crescente, é facilmente associável ao encontro de Caleb e Mae, no cult de vampiros, Quando Chega a Escuridão (1987), da diretora Kathryn Bigelow, que de mesmo modo, era uma sombria volta pelos cenários noturnos desolados das regiões pequenas nos Estados Unidos. A inspiração não seria surpresa sabendo como Guadagnino era amigo de Bill Paxton, que fora um dos atores destaques da produção. Incluindo uma dedicatória à ele no seu tão badalado, Me Chame Pelo Seu Nome (2017).

Quando segue sem rumo, após o pai, Leonard (André Holland) abandoná-la, Maureen é interceptada por um estranho, Sully (Mark Rylance), que se apresenta como um ser igual a ela, vindo a oferecer uma senhora desfalecendo, como refeição pela manhã seguinte. Os trejeitos do personagem chamam bastante atenção, com intenções dúbias, vindo a figurar a posição de grande vilão da trama. E é difícil não enxergar Rylance, como o ator ideal para encarnar os próximos vilões nas adaptações posteriores de Stephen King. Inclusive, Holland estrelou a ambiciosa série da Hulu, Castle Rock que reunia um conjunto do universo do autor. Muito do conflito canibalístico, relembra Doutor Sono, publicado em 2013, com a trupe da cartola que vitimava crianças com habilidades paranormais, com um modus operandis semelhante aos ritos das criaturas famintas retratadas aqui. Como dita a passagem com a participação do diretor David Gordon Green, aonde seu personagem revela como a experiência de se alimentar até os ossos de um corpo, é transcendental para eles.

A dissolução da estética granulada setentista, não é surpresa, tendo visto Suspiria (2018), mas o que chama atenção, logo na sequência de abertura, é como parece bastante influenciado pelos exemplares da francesa, Julia Ducournau (Titane e Raw). Isso segue em frente em todas as cenas gráficas, extremamente estilizadas, quando os amassos calientes da dupla protagonista, e a profusão de sangue, jorram presentes. Pedaços da carne sendo mordidos, assim como closes de corpos, ou rostos ensanguentados se repetem, também conservando em segundo plano, leituras de gênero, sexualidade e, o não pertencimento, tão costumeiros nos longas franceses da diretora. Uma cena brutal ocorre em meio a ação de um encontro às escuras, numa pegação entre o personagem de Chalamet, com outro homem em um milharal. Os dilemas morais presentes nesse ato de consumir pessoas, passam frente aos nossos olhos, sem deixar muito o que mastigar, num misto de condenação e empatia. Sendo uma grande mistura do cinema pop americano, com o provocativo do cinema europeu.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

A Wounded Fawn (2022)


O ato de repassar por gerações através da oratória mitos e lendas, é uma das características que mais remetem a Grécia. Tanto o patrimônio intelectual, por serem a primeira civilização a desenvolver uma escola para o raciocínio, como a mitologia fundada por eles seguem sendo as mais influentes no mundo, ganhando novas leituras pelas novas gerações. Algumas das que continuamente despertam o interesse público, são as que exemplificam a relação entre poder e abuso por deuses, e outras figuras míticas, para com o gênero feminino. A Medusa violada por Poseidon, e o registro da tentativa de fuga do coito forçado por Apollo contra Daphne, são uns dos principais exemplos. Mas o que diabos isso tem a ver com o novo lançamento da Shudder??


Em 2019, Ryan Stevens (Jakob's Wife, 2020) realizou A Garota do Terceiro Andar, um dos mais inventivos filmes sobre casas assombradas nos últimos anos, mesmo sem um bom consenso de aceitação por parte dos telespectadores, pela linguagem visual que manifestava o paranormal de forma agressiva e repulsiva, com discursos que soaram desagradáveis à respeito da violência feminina. O certo é, como um novo diretor que filma "coisas estranhas", com baixíssimo orçamento, ele ganhou destaque, e segue em atividade chamando atenção, o que nos leva a este novo lançamento.

O grande número de primeiros encontros que deram errado, alguns deles vindo a parar em noticiários na TV, devem ter sido a base para Stevens colocar o cérebro para funcionar, e imaginar o mais surreal dos cenários. A Wounded Fawn acompanha Bruce (Josh Ruben), um aparente homem de negócios, e também interessado em comercializar e consumir arte, em um leilão de uma peça única, que esculpe uma cena da mitologia grega, e quando não consegue arrematá-la, vai atrás de seduzir a compradora, Kate (Malin Barr), logo se revelando um serial killer fazendo a próxima vítima. Mais tarde, atrai a atenção de Meredith (Sarah Lind), que trabalha em um museu, e quando surge uma atração imediata entre os dois, a convida para um encontro em sua casa numa região afastada. A mulher nota indícios suspeitos, até quando no jantar acredita ter visto alguém do lado de fora do local, o que não a permite seguir a noite de forma tranquila, quando finalmente ocorre um confronto com a identidade de assassino do homem, um momento de ruptura se inicia para ele. A escultura do momento inicial, que exibe As Erínias, é o objeto que define todo o curso para Bruce em A Wounded Fawn. Na mitologia grega, As Erínias eram três personificações da vingança, composta por Megera, Tisífone e Alecto, que iam em busca do acerto de contas com os humanos.

Quando Bruce acorda na poça do próprio sangue, se vê diante de um purgatório delirante de onde não consegue escapar. O roteiro escrito por Stevens, com Nathan Faudree coloca em ação a transposição de uma tragédia grega, como os círculos do Inferno de Dante. É uma questão de tempo para as Erínias fazerem o julgamento, e o que está em jogo é a reparação e expiação por questões de gênero. Meredith desaparece quando assume um novo papel nesse cenário, e a violência praticada contra mulheres se volta contra o assassino. Para ele é como presenciar um sonho ruim de onde se não consegue acordar. 


Filmado em película de 16mm, como exemplares do cinema arthouse estrangeiro, o modo da direção em utilizar expressões, máscaras e símbolos para ilustrar a natureza do tormento do personagem são bem colocados num primeiro momento, afinal, é a curiosidade em se ver reaproveitada uma premissa que se tornou bastante previsível, que faz do filme instigante. O título, que em tradução literal seria "Um Cervo Ferido", imediatamente remete a um outro capítulo da história grega. Mas Stevens está mais interessado em usar dos argumentos para criar uma bad trip em estilo, do que ir um pouco mais a fundo na mitologia. Inclusive sequer é possível encontrar entrevistas suas aonde relate alguma admiração por ela, sendo apenas fruto do roteiro de Faudree. De qualquer modo, a repetição dessa encenação se torna limitada conforme se prolonga, resultado da exposição que cai na obviedade, e Sarah Lind poderia ter mais aproveitamento para um confronto mais satisfatório na reta final. É Josh Ruben que se sai melhor sucedido, tendo um ponto melhor articulado como o protagonista Bruce, quando reduzirmos toda a interpretação aos seus sentidos confusos diante de toda a viagem da proposta. No final das contas, é a tentativa de criatividade com esse elementos, na forma de filme de terror que fica na memória, e atrai o público curioso, que pode encontrar o que procura em doses ácidas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Um Lugar Chamado Dignidade (2021)


Um dos fatos que deveriam ser mais comentados nas aulas de História, é que com o fim do Terceiro Reich (1933 - 1945) na Segunda Guerra Mundial, milhares de oficiais do comando nazista fugiram e se abrigaram na América Latina. Josef Mengele (1911 - 1979) e Franz Stangl (1908 - 1971), conhecidos respectivamente como "Anjo da Morte", e "Morte Branca", são alguns dos mais notórios que estiveram em território nacional. Um dos nossos países vizinhos, o Chile, foi outro conhecido local de destino procurado pelos alemães, que sob a ditadura de Pinochet, conhecido abertamente como um apoiador da causa nazista, conseguiram permanência favorecida, como o ocorrido com Walter Rauff (1906 - 1984). É neste cenário que é preciso contextualizar Um Lugar Chamado Dignidade/Un Lugar Llamado Dignidad (2021), produção chilena dirigida por Matías Rojas (Root, 2013), que retrata eventos relacionados à estes, e recentemente chegou ao catálogo da HBO em outros países.


Em 1989, ano anterior ao fim da ditadura no Chile, após um incidente, Pablo (Salvador Insunza), um garoto de 12 anos é mandado para uma comunidade rural, promovida como "o orgulho alemão" na região do Maule, como recomendação do pastor da igreja que ele e a mãe, Cecília (Gianina Fruttero) frequentam, com a promessa de lhe trazer um futuro melhor, longe de habituais encrencas. Estamos falando da Colônia Dignidade, fundada em 1961, pelo ex-militar Paul Schäfer. Prévias informações podem auxiliar o telespectador a compreender de antemão o que está a ser retratado, no que vem a ser proposto como a adaptação mais fiel ao relatos obtidos sobre a Colônia no cinema.


Pablo conquista rapidamente a simpatia do líder local, o tio Paul (Hanns Zischler), que desenvolve grande interesse nos talentos do menino com a música, e o piano. A ordem no local é definida pelo estilo de vida que estimula, e ressalta a importância do trabalho pesado desempenhado pelos residentes, separados por gênero em seus aposentos, que vivem sob preceitos religiosos, que ditam rigidamente cada passo que deve ser dado por eles, em um processo de constante vigia, com intervenção de Paul. Todos na Colônia, vivem em função da Colônia. As crianças são parte fundamental da organização, tendo muitas delas nascidas ali, como Rudolph (Noa Westermeyer), que é invejado por todos os menores por ter chegado a posição de "Sprinter", nomeação dada por Paul, pelo aparente modelo exemplar do garoto, que assim ganha acesso a TV. O que se torna o objetivo de Paul, para receber tais regalias e favoritismo do militar. Em paralelo, a enfermeira Gisela (Amelia Kassai), segue cegamente os ensinamentos do líder, por almejar receber como presente divino um filho, com Johannes (David Gaete). Tentativas frustradas se acumulam para o casal, enquanto Pablo começa a criar suspeitas, e ao lado de Rudolph se une para confrontar a realidade sombria mascarada no ambiente, que vende a imagem de prosperidade e sucesso, tendo propagandas de alcance na rede nacional de TV, pela influência política alcançada com o apoio da ditadura.

O roteiro, também escrito por Matías elabora uma estrutura a partir da coleta de dados que se teve conhecimento público, a partir de uma série de investigações, envolvendo informações de desaparecimentos. Ao buscar tais relatos, é possível notar como é tão complementado pelos eventos que se sucederam, como as visitas de Augusto Pinochet que ocorriam no local, e as constatações chocantes sobre a função da Colônia. A sugestão do horror, tanto sobre as ações da ditadura, quanto da influência de ideais nazistas resulta na construção de uma atmosfera inquietante, que sabe se apresentar bem, dado a perturbadora história real escolhida. Nomes de diretores do cenário internacional como Arturo Ripstein (El Castillo de la pureza, 1972), Agustí Villaronga (Tras el cristal, 1986), e até mesmo, Guillermo Del Toro (A Espinha do Diabo, 2001) surgem como possíveis inspirações do diretor, pelas referências visuais e temáticas. No entanto, ainda é falho em execução, se por um lado, sabe tirar proveito das interações de Insunza com Zischler, como uma ilustração absurda da relação torpe entre "aprendiz e mestre", e a conexão criada com Noa, de suma importância para impactar o público mais tarde; ainda não eleva suficientemente o material, além de ser pouco interessado em explorar a importância do discurso religioso, para traçar uma linha com fanatismo e tentativa de lavagem cerebral dos residentes. Considerando certa influência das recentes ondas do cinema arthouse europeu, sublinha sobre os mesmos esquemas, se alinhando em concepção estética, pouco sabendo extrair uma força maior, sem encontrar rumo para uma resolução mais satisfatória, que segue uma cartilha previsível, que tira muito da tentativa de se criar autenticidade pela parte da direção.


Assim tendo uma passagem com uma fantasia do Krampus, figura maquiavélica natalina, e a tensão sexual, como tentativas vãs de criar clímax, sendo momentos de criação de choque que não são melhor amparadas pelo conjunto, mesmo que trauma e tortura sejam elementos automaticamente sugeridos. O elenco infantil é muito expressivo, e Hanns Zischler tem uma presença que relembra a de Udo Kier, pelo porte que emana uma energia nada confiável, e que acende as nossas luzes de "perigo", pena que tenha faltado saber usá-los de melhor forma para concluir este, que é um dos eventos mais silenciados, e ao mesmo tempo mais amedrontadores da história chilena. Uma sugestão de morte por exemplo, faz referência a um dos principais marcos da investigação do caso, mas acaba tendo vaga utilização, assim como núcleos paralelos mal fechados. A adoção de um tom de fábula, como se tivéssemos diante de uma história sobre a perda da inocência de Pablo, se perde por aí também, tendo um desfecho de execução automática que deixa bastante a desejar, e com pouco a se refletir após a sessão, ao contrário do esperado do que era possível se fazer com o potencial tremendo do realizador em mãos. 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Nocebo (2022)


Uma das coisas que mais me fascinam no cinema, é a habilidade de reintegrar o papel do intruso no cinema de gênero. É possível datar este personagem narrativo desde o visitante de Terence Stamp em Teorema (1968), pelo início da observação da manifestação onipresente de tal figura, de suma importância para a ruptura e derrocada do núcleo familiar retratado por Pasolini. O "intruso" é uma das principais maneiras de se ilustrar no horror um inimigo tão antigo, quanto terreno: as forças malignas, que saiam das trevas para perturbar comunidades rurais no antigo imaginário inglês, e folclórico, e que de tal forma continua a ser reproduzido no ato de se contar histórias. Assim sendo, apontar um estranho como o portador do mal, seria uma das práticas mais primitivas do comportamento do homem, diante de questões que permanecem incompreensivas a ele. Continuamos a relembrar do uso do mal personificado na Senhora Baylock em A Profecia (1976), o Alan Bates como hóspede sexy em Estranho Poder de Matar (1978), até o bode Black Philip em A Bruxa (2015), a matriarca em Hereditário (2018) e Martin Lang em O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017). O mal tem muitas faces, como já visto tantas vezes anteriormente, e como volta a provar o irlandês Lorcan Finnegan em Nocebo, sua nova empreitada numa co-produção entre Irlanda e Filipinas.

A narrativa adentra a rotina de Christine (Eva Green), uma designer de moda que tenta se estabelecer no mercado de trabalho, contudo sua vida é paralisada por uma notícia trágica, e o encontro estranho com um cão em estado debilitado, que lhe lança carrapatos como um cigano recitando uma maldição, a fazendo sofrer de males de saúde que não são diagnosticáveis. Tremedeiras, e lapsos de perda de memória passam a atormentá-la, a ponto de um dia receber uma empregada, Diana (Chai Fonacier) e sequer lembrar de tê-la contatado. Ao aceitá-la em sua casa, pela mulher oferecer ajuda, com tratamentos alternativos da cultura antiga das Filipinas, temos o início ao que será um jogo dúbio de percepção, para compreender e tentar estipular quais as reais intenções dela no local com a família.

Na residência, Christine convive de maneira conflituosa com o marido, Felix (Mark Strong), e a filha, Bobs (Billie Gadsdon), também de difícil temperamento. Diana surge como a resposta para a aflição da patroa, sabendo de maneiras inusitadas como conter os incômodos do seu corpo, assim como conquista a afeição de Bobs, que parece largada entre os problemas dos pais. A relação entre empregado e empregador, assim como o estilo de vida a que pertence Christine são alvos da visão estabelecida no roteiro escrito pelo colaborador frequente de Finnegan, Garret Shanley que alterna entre o viés psicológico e sobrenatural do horror proposto. A relação com a espiritualidade de Diana é a principal marca de sua identidade com a história do povo filipino. E através disso identificamos símbolos da natureza maléfica que ronda os personagens. A escolha do título, é um termo que seria o oposto de placebo, como um tratamento paliativo nocivo, que causa danos. Fazendo um paralelo com os cães vigias de Damien em A Profecia por exemplo, temos o cão cego e carregado de carrapatos que possui uma presença espiritual para a protagonista, a partir da abertura.

Em seu filme anterior, Viveiro (2019) o diretor cometia o erro com a representação do mal, através de um personagem que assumia uma função automática e vagamente explorada por ele, que comprometia muito o resultado final. Curioso como Lorcan Finnegan corrige totalmente isso em Nocebo, voltando a construção narrativa inteiramente para isso. O filme também segue a identidade de "cinema estranho" a qual ficou conhecido, fazendo de uma esquisitice repugnante visual um atributo, com diversas cenas desconfortáveis, envolvendo alucinações, deformidades físicas e animais e insetos assumindo papéis místicos assustadores, onde nessa narrativa "acreditar é importante", como bem dito por uma das personagens. O mesmo pode ser usado para descrever o também impressionante Resurrection, comentado no blog. 

A personagem de Chai Fonacier é muito bem amparada pelo roteiro, não caindo na típica vilanização por ser de uma cultura oposta as tradições do Ocidente, mas adere isso como parte central para compreendê-la. A resolução promove um embate muito bem escrito, amarrando pontas entre a trajetória de suas personagens, e tecendo críticas dolorosas a indústria da moda, com um assombroso histórico de exploração de mão escrava em países Orientais. A harmonia e o equilíbrio de execução alcançado para fazer essa transição promove um dos melhores atos do cinema em 2022. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Sorria (2022)


O pensamento de que o sorriso é como uma máscara, pelo qual escondemos nossa verdadeira forma interior do resto do mundo, sempre ronda o imaginário popular. E carregar um sorriso no rosto é, especialmente, descrito como um fardo para aqueles que sofrem de depressão. Parker Finn parece ter tido essa percepção para realizar Sorria (Smile), que toma a forma explícita de um filme-trauma.


Um pesadelo recorrente de um evento familiar traumático, assombra a psicóloga Rose Cotter (Sosie Bacon), que atende em um hospital público, estando sobrecarregada constantemente com o número de pacientes. Tentando manter a eficiência em seu trabalho, ao insistir em transferir para o local uma jovem, Laura Weaver (Caitlin Stasey), acaba por se deparar com um desdobramento chocante em sua vida. A mulher está perturbada, parece perdida e alega está sendo perseguida por uma figura, que veste o rosto de outras pessoas, surgindo com um sorriso perturbador, desde que testemunhou um suicídio, e então também se suicida durante a sessão com Cotter. A visão do rosto mutilado, ensanguentado e com um sorriso estampado da jovem perturba a doutora, e é que o diretor também deseja que fiquemos na cabeça. Através do contato com Joel (Kyle Gallner), uma investigação é iniciada, e ao descobrir um padrão de mortes brutais, a protagonista descobre ser a próxima da lista a enfrentar essa força diabólica que só ela poderá ver de forma visível.


Traçando uma leitura sobre saúde mental, o filme faz do evento traumático com o suicídio, a manifestação de uma maldição sobrenatural, seguindo à risca uma fórmula já batida, onde temos a perseguição implacável da morte iminente, como popularmente apresentado em Premonição (2000). Com esse leque de elementos previsíveis (maldição, trauma e força maligna), e tendo tantas possíveis referências prévias, sendo mais curiosa a de Argento com Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), Sorria encontra uma forma de ser inventivo, e isso pela capacidade de direção de Finn, se espelhando bastante em exemplares de diretores do cinema independente da última década, como Ari Aster (Hereditário) e David Robert Mitchell (Corrente do Mal), optando por enquadramentos com ares majestosos com a noção de espaçamento, planos aéreos que passeam pelo ar de cabeça para baixo, e um planejamento cuidadoso em criar jumpscares, atendendo o apelo em filmar cenas desconcertantes. O controle de ambiente com a direção de arte se diverte, inserindo jogo-xadrez e imagens que ilustram confusão e perturbação mental espalhadas por todo o longa.


Sosie Bacon (de Charlie Says e a série Mare of Easttown), tem uma performance bastante elogiável, observando o curso da ação com o passar dos dias, e o cansaço e aflição ficando cada vez mais visíveis em sua feição. Uma cena na festa de aniversário do sobrinho, na casa da irmã Holly (Gillian Zinser), se destaca pela proporção que atinge com a violência visual abrupta. Também é um ponto chave por ficarmos por trás da linha de desconfiança dos outros personagens, que começam a vê-la como louca. A passagem de Caitlin Stasey na abertura, também é considerável, não somente por apresentar o primeiro grande momento de horror, mas por sabermos que Sorria funciona como uma extensão do curta de Finn, Laura Hasn't Sleep (2020), que relata um evento anterior com a personagem.


A jornada de Rose se resume em enfrentar o trauma de sua infância, e o último ato é centrado no confrontro com o grande demônio que a segue por toda sua vida, revivendo a primeira experiência de sofrer um grande choque emocional. Parece haver muito mais por trás da entidade sobrenatural, que aparece de repente através de visões, que acontecem como se fossem reais para suas vítimas, e o roteiro de Finn, no entanto, prefere manter o mínimo de informações em seu decorrer de quase duas horas, deixando no ar sugestões para o público sobre o que especular sobre a forma como ela age, e de como a maldição não seria mera coincidência em testemunhar um ato de violência. O desfecho deixa uma sensação frustrante, mas em meio as diversas tentativas de fazer sucesso com filmes de terror semelhantes, é o que o diretor consegue fazer com esse mínimo que garante uma execução sólida, fazendo da fórmula barata um terror psicológico eficiente.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Significant Other (2022)


O temor pelo desconhecido habitável no outro semelhante, de forma tanto psicológica, como literal, é o combustível para a dupla de diretores, formada por Robert Olsen e Dan Berk (de Staķe Land II, 2016) em Significant Other, um produto com selo original do streaming dos estúdios Paramount. A escolha do título vem de um termo com interpretações que variam na língua inglesa, e não por acaso, a narrativa se resume em um jogo dúbio entre os personagens. 



O acampamento planejado por Ruth (Maika Monroe) e Harry (Jake Lacy), como um final de semana romântico na natureza, está prestes a ser arruinado, com o prenúncio do avistamento de uma estranha forma de cometa no céu, na abertura. Seguindo o curso por entre a mata fechada, primeiro vemos aos poucos a relação do casal ser abalada, por inseguranças e questões pessoais mal resolvidas, para então depois começamos a ver que não se trata de apenas um conflito aparente, mas que existe algo de muito errado se manifestando entre os dois, e então a paranóia é instalada. A direção se diverte em brincar com a estrutura, primeiro estabelecendo o campo dramático, trabalhando em ritmo sóbrio e devagar a interação entre eles, para então dar rumo a uma guinada absurda e completamente diferente, que acaba por ser muito bem-vinda, assumindo a identidade de horror.

Maika Monroe é um dos principais rostos do novo cinema independente, e tendo já trabalhado com a dupla de diretores anteriormente em Villains (2019), confiou no projeto a ponto de também financiá-lo como produtora. A atriz possui um apelo expressivo tremendo, que os dois seguem aproveitando, e se divertem, primeiro imitando o tipo de cinema que ela costuma estrelar, para então pouco a pouco, se demonstrar rapidamente ousado como um filme B de ficção científica. Dando continuidade ao que grandes exemplares do gênero, como O Enigma de Outro Mundo (1982), e Vampiros de Almas (1956) iniciaram.


Com falsas pistas e momentos de pura galhofa inesperada, os twists são acompanhados pela sagacidade da presença de Jake Lacy, que se diverte no papel deixando de ser um bobo sofredor pela amada, para se tornar um dos vilões mais carismáticos do ano. E com momentos de humor corporal impagáveis. Embarcar ou não, fica sempre cargo do telespectador, mas de forma despretensiosa é uma boa e curta surpresa.

Confira o Filme + Legenda

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Era Uma Vez Um Gênio (2022)


A literatura do Médio Oriente é uma das mais influentes com seus contos sobre morte e tragédia, desde a coleção popular intitulada As Mil e Uma Noites, que obteve reinterpretações no cinema por diretores como Miguel Gomes e Pier Paolo Pasolini. Agora o maior nome do cinema australiano, George Miller se lança em um universo místico e sedutor semelhante em Era Uma Vez Um Gênio/Three Thousand Years of Longing, um projeto com ares ambiciosos, adaptado do conto "The Djinn's in the Nightingale's Eye", da autora A.S. Byatt


Istambul, o centro denominado como o local de cruzamento entre o Ocidente e Oriente, é o palco onde se inicia a narrativa, com a chegada da narratalogista inglesa, Alithea (Tilda Swinton) para um evento num museu. Com um passado marcado por um relacionamento, e uma tentativa fracassada de começar uma família, a mulher tão dedicada ao trabalho acredita estar sucumbindo a própria imaginação, tendo visões com seres mágicos que só ela vê se materializar na multidão. Forçada a passar as últimas horas no país turco em repouso num quarto de hotel, ao adquirir um artefato antigo, vê sua vida ganhar uma nova página. Um ser mágico se liberta da garrafa, provando que sua inclinação para a loucura na verdade é falsa, o Djinn (Idris Elba) é real, está a sua frente mudando de forma  e a concede o poder de ter três pedidos atendidos. Se comunicando primeiramente em eliniká, o gênio não demora para aprender a língua inglesa moderna, e assim compartilhar sua trajetória existencial.


Com uma estrutura em ordem cronológica, Era Uma Vez Um Gênio se divide em diferentes períodos antes de se concentrar completamente no tempo atual, ilustrando os eventos que levaram as três encarcerações do Djinn durante os três mil anos que esteve à espera da libertação. O roteiro de Miller escrito em parceria com Augusta Gore, utiliza figuras históricas reais e bíblicas, partindo do Egito antigo, aonde encontramos a Rainha de Sába (a modelo, Aamito Lagum) e o Rei Salomão (Nicolas Mouawad), até o Império Turco-Otomano no Palácio de Sulimão, O Magnífico (Lachy Hulme). Uma concubina apaixonada pelo Príncipe Mustafá (o cantor Matteo Bocceli), e Zéfir (Burcu Gölgedar), uma das diversas esposas de um mercador também assumem o comando das histórias. Envolto de jogos de sedução e poder, o gênio testemunha sem poder interferir o destino trágico dos humanos, enquanto Alithea o ouve atentamente para poder escapar das armadilhas dos pedidos.

Miller se diverte reunindo um time de confiança, tendo parceiros de trabalho de longa data o auxiliando, com Junkie XL (Mad Max) na trilha sonora, e a sua esposa, Margaret Sixel na edição. Como uma grande produção da Metro Goldwyn-Meyer, demonstrar ter tido liberdade suficiente para exibir morte e sexo na tela, e se permitir sonhar com as escolhas visuais, sendo bastante luxuoso e glamouroso, enquanto em um momento ou outro, é cafona conscientemente. Mas sendo direto, tendo uma variedade de referências históricas e intelectuais, Era Uma Vez Um Gênio mergulha com precisão no modo de storytelling, que no final das contas resume como a coisa mais preciosa do universo, seja da matéria humana ou mística, é o amor. Idris Elba e Tilda Swinton formam uma dupla amorosa que parece não ter a chama acessa do desejo, mas ainda possuem um elo bonito. E o mais fascinante é a forma como apresenta as divagações sobre o mundo passado repleto de crenças, em contradição com a modernidade morta de espírito, quando tem a ciência e racionalidade como novo deus. O atual mundo repele aquilo que é puramente divino, intoxicando o fogo-fátuo que compõe o gênio.

Com uma recepção morna no Festival de Cannes, e uma baixa performance nas bilheterias deste ano, Era Uma Vez Um Gênio parece ter adiantado lugar nos futuros exemplares de culto, mesmo que em grupos pequenos de admiradores de Miller. Flertando com aventura e fantasia, há rumos que podem ser insatisfatórios para os consumidores usuais destes gêneros, e não será eficiente para quem está inerte ao contato do desejo e amor, que felizmente não é mais o caso de quem escreve. Sendo corajosamente íntimo e sentimental, é um baita filme especial. 

PS: Valeu Felipe ;-)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Atena (2022)


Sem texto hoje, apenas passem longe desse filme caso tenham muito respeito por La Haine (1995), e sensatamente detestem Crash (2004).

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Hypochondriac (2022)


Amadurecer é um processo longo e doloroso, principalmente tendo marcas tão profundas deixadas logo na infância. Addison Heimman compreende esse dilema em seu filme de estréia como diretor, Hypochondriac aonde espelha suas experiências de vida sendo um homem latino-americano gay. Com passagens por diversos festivais de gênero, embora tenha sido planejado dentro da estrutura de um filme de horror, se trata de um projeto pessoal e bastante corajoso por ilustrar a sua difícil batalha com a saúde mental.


Will (Zach Villa) carinhosamente apelidado de "Lindo" pela mãe na infância, cresceu num lar arruinado por um episódio violento a partir que ela (interpretada por Marlene Forte), começou a dar indícios de um desequilíbrio psicológico, quando a insegurança e desconfiança com o marido (Chris Doubek) aumentaram. O período parece ter ficado no passado, quando Will se encontra num relacionamento instável com Luke (Devon Graye), e vive do trabalho produzindo peças de argila e porcelana, até que começa a ser contatado pela mãe, o que desperta toda a insegurança e inquietação em sua mente. Como se tivesse vivenciando o mesmo estado mental da mãe, é então que acompanhamos a degradação psicológica numa descida infernal para a loucura do personagem. A perturbação do personagem é materializada com visões de uma pessoa vestida de lobo, que cada vez mais se aproxima, ameaçando entrar em contato físico com Will. As reações para se distanciar da besta geram um colapso com consequências drásticas e bastante severas, que viram a sua vida do avesso. 

Hypochondriac se coloca no limiar entre a perda da sanidade e o completo descontrole, sendo um retrato honesto e bastante brutal de uma mente perturbada. Quando nem mesmo Luke pode auxiliar o amado, tudo parece um caso perdido, e a solidão na batalha travada consigo mesmo é outro elemento destacado no roteiro de Heimann. Muitas vezes transpor os lapsos na tela demonstra a limitação da realização em termos de orçamento, ainda que a direção consiga contornar com o estudo de personagem que propõe, tendo soluções bastante criativas como resultado do esforço de equipe. Passagens envolvendo sexo e nu frontal terminam por ter uma atmosfera bastante perturbadora, atenuando parte da carga sexual e erótica de expor os atores de forma íntima por exemplo.

Heimman certamente teve muita influência por Donnie Darko (2001), pela forma como escolhe exibir o declínio psicológico do protagonista ao trazer a figura animal em tela. Tal como Frank no famoso filme, o animal é a materialização dos problemas geracionais de Will, dos diversos traumas ocasionados pela relação com os pais. Will é bem resolvido com a própria sexualidade, ser gay não parece um fator tão agravante, mas lidar com estar num relacionamento saudável sem a influência nociva das figuras paternais sim. Depois de tanto caos, Hypochondriac se encerra de forma positiva, como uma demonstração sobre como lutar com a própria mente pode ser uma verdadeira história de horror, e também como aprender a estar próximo e tratar dos demônios internos é necessário para se seguir em frente.

2022 em 222 Filmes

Não é possível singularizar o cinema, sendo um vasto campo de linguagem visual e sonora. Pode ser um refúgio, quando não queremos nos inteir...