quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Nocebo (2022)


Uma das coisas que mais me fascinam no cinema, é a habilidade de reintegrar o papel do intruso no cinema de gênero. É possível datar este personagem narrativo desde o visitante de Terence Stamp em Teorema (1968), pelo início da observação da manifestação onipresente de tal figura, de suma importância para a ruptura e derrocada do núcleo familiar retratado por Pasolini. O "intruso" é uma das principais maneiras de se ilustrar no horror um inimigo tão antigo, quanto terreno: as forças malignas, que saiam das trevas para perturbar comunidades rurais no antigo imaginário inglês, e folclórico, e que de tal forma continua a ser reproduzido no ato de se contar histórias. Assim sendo, apontar um estranho como o portador do mal, seria uma das práticas mais primitivas do comportamento do homem, diante de questões que permanecem incompreensivas a ele. Continuamos a relembrar do uso do mal personificado na Senhora Baylock em A Profecia (1976), o Alan Bates como hóspede sexy em Estranho Poder de Matar (1978), até o bode Black Philip em A Bruxa (2015), a matriarca em Hereditário (2018) e Martin Lang em O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017). O mal tem muitas faces, como já visto tantas vezes anteriormente, e como volta a provar o irlandês Lorcan Finnegan em Nocebo, sua nova empreitada numa co-produção entre Irlanda e Filipinas.

A narrativa adentra a rotina de Christine (Eva Green), uma designer de moda que tenta se estabelecer no mercado de trabalho, contudo sua vida é paralisada por uma notícia trágica, e o encontro estranho com um cão em estado debilitado, que lhe lança carrapatos como um cigano recitando uma maldição, a fazendo sofrer de males de saúde que não são diagnosticáveis. Tremedeiras, e lapsos de perda de memória passam a atormentá-la, a ponto de um dia receber uma empregada, Diana (Chai Fonacier) e sequer lembrar de tê-la contatado. Ao aceitá-la em sua casa, pela mulher oferecer ajuda, com tratamentos alternativos da cultura antiga das Filipinas, temos o início ao que será um jogo dúbio de percepção, para compreender e tentar estipular quais as reais intenções dela no local com a família.

Na residência, Christine convive de maneira conflituosa com o marido, Felix (Mark Strong), e a filha, Bobs (Billie Gadsdon), também de difícil temperamento. Diana surge como a resposta para a aflição da patroa, sabendo de maneiras inusitadas como conter os incômodos do seu corpo, assim como conquista a afeição de Bobs, que parece largada entre os problemas dos pais. A relação entre empregado e empregador, assim como o estilo de vida a que pertence Christine são alvos da visão estabelecida no roteiro escrito pelo colaborador frequente de Finnegan, Garret Shanley que alterna entre o viés psicológico e sobrenatural do horror proposto. A relação com a espiritualidade de Diana é a principal marca de sua identidade com a história do povo filipino. E através disso identificamos símbolos da natureza maléfica que ronda os personagens. A escolha do título, é um termo que seria o oposto de placebo, como um tratamento paliativo nocivo, que causa danos. Fazendo um paralelo com os cães vigias de Damien em A Profecia por exemplo, temos o cão cego e carregado de carrapatos que possui uma presença espiritual para a protagonista, a partir da abertura.

Em seu filme anterior, Viveiro (2019) o diretor cometia o erro com a representação do mal, através de um personagem que assumia uma função automática e vagamente explorada por ele, que comprometia muito o resultado final. Curioso como Lorcan Finnegan corrige totalmente isso em Nocebo, voltando a construção narrativa inteiramente para isso. O filme também segue a identidade de "cinema estranho" a qual ficou conhecido, fazendo de uma esquisitice repugnante visual um atributo, com diversas cenas desconfortáveis, envolvendo alucinações, deformidades físicas e animais e insetos assumindo papéis místicos assustadores, onde nessa narrativa "acreditar é importante", como bem dito por uma das personagens. O mesmo pode ser usado para descrever o também impressionante Resurrection, comentado no blog. 

A personagem de Chai Fonacier é muito bem amparada pelo roteiro, não caindo na típica vilanização por ser de uma cultura oposta as tradições do Ocidente, mas adere isso como parte central para compreendê-la. A resolução promove um embate muito bem escrito, amarrando pontas entre a trajetória de suas personagens, e tecendo críticas dolorosas a indústria da moda, com um assombroso histórico de exploração de mão escrava em países Orientais. A harmonia e o equilíbrio de execução alcançado para fazer essa transição promove um dos melhores atos do cinema em 2022. 

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