quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

A Wounded Fawn (2022)


O ato de repassar por gerações através da oratória mitos e lendas, é uma das características que mais remetem a Grécia. Tanto o patrimônio intelectual, por serem a primeira civilização a desenvolver uma escola para o raciocínio, como a mitologia fundada por eles seguem sendo as mais influentes no mundo, ganhando novas leituras pelas novas gerações. Algumas das que continuamente despertam o interesse público, são as que exemplificam a relação entre poder e abuso por deuses, e outras figuras míticas, para com o gênero feminino. A Medusa violada por Poseidon, e o registro da tentativa de fuga do coito forçado por Apollo contra Daphne, são uns dos principais exemplos. Mas o que diabos isso tem a ver com o novo lançamento da Shudder??


Em 2019, Ryan Stevens (Jakob's Wife, 2020) realizou A Garota do Terceiro Andar, um dos mais inventivos filmes sobre casas assombradas nos últimos anos, mesmo sem um bom consenso de aceitação por parte dos telespectadores, pela linguagem visual que manifestava o paranormal de forma agressiva e repulsiva, com discursos que soaram desagradáveis à respeito da violência feminina. O certo é, como um novo diretor que filma "coisas estranhas", com baixíssimo orçamento, ele ganhou destaque, e segue em atividade chamando atenção, o que nos leva a este novo lançamento.

O grande número de primeiros encontros que deram errado, alguns deles vindo a parar em noticiários na TV, devem ter sido a base para Stevens colocar o cérebro para funcionar, e imaginar o mais surreal dos cenários. A Wounded Fawn acompanha Bruce (Josh Ruben), um aparente homem de negócios, e também interessado em comercializar e consumir arte, em um leilão de uma peça única, que esculpe uma cena da mitologia grega, e quando não consegue arrematá-la, vai atrás de seduzir a compradora, Kate (Malin Barr), logo se revelando um serial killer fazendo a próxima vítima. Mais tarde, atrai a atenção de Meredith (Sarah Lind), que trabalha em um museu, e quando surge uma atração imediata entre os dois, a convida para um encontro em sua casa numa região afastada. A mulher nota indícios suspeitos, até quando no jantar acredita ter visto alguém do lado de fora do local, o que não a permite seguir a noite de forma tranquila, quando finalmente ocorre um confronto com a identidade de assassino do homem, um momento de ruptura se inicia para ele. A escultura do momento inicial, que exibe As Erínias, é o objeto que define todo o curso para Bruce em A Wounded Fawn. Na mitologia grega, As Erínias eram três personificações da vingança, composta por Megera, Tisífone e Alecto, que iam em busca do acerto de contas com os humanos.

Quando Bruce acorda na poça do próprio sangue, se vê diante de um purgatório delirante de onde não consegue escapar. O roteiro escrito por Stevens, com Nathan Faudree coloca em ação a transposição de uma tragédia grega, como os círculos do Inferno de Dante. É uma questão de tempo para as Erínias fazerem o julgamento, e o que está em jogo é a reparação e expiação por questões de gênero. Meredith desaparece quando assume um novo papel nesse cenário, e a violência praticada contra mulheres se volta contra o assassino. Para ele é como presenciar um sonho ruim de onde se não consegue acordar. 


Filmado em película de 16mm, como exemplares do cinema arthouse estrangeiro, o modo da direção em utilizar expressões, máscaras e símbolos para ilustrar a natureza do tormento do personagem são bem colocados num primeiro momento, afinal, é a curiosidade em se ver reaproveitada uma premissa que se tornou bastante previsível, que faz do filme instigante. O título, que em tradução literal seria "Um Cervo Ferido", imediatamente remete a um outro capítulo da história grega. Mas Stevens está mais interessado em usar dos argumentos para criar uma bad trip em estilo, do que ir um pouco mais a fundo na mitologia. Inclusive sequer é possível encontrar entrevistas suas aonde relate alguma admiração por ela, sendo apenas fruto do roteiro de Faudree. De qualquer modo, a repetição dessa encenação se torna limitada conforme se prolonga, resultado da exposição que cai na obviedade, e Sarah Lind poderia ter mais aproveitamento para um confronto mais satisfatório na reta final. É Josh Ruben que se sai melhor sucedido, tendo um ponto melhor articulado como o protagonista Bruce, quando reduzirmos toda a interpretação aos seus sentidos confusos diante de toda a viagem da proposta. No final das contas, é a tentativa de criatividade com esse elementos, na forma de filme de terror que fica na memória, e atrai o público curioso, que pode encontrar o que procura em doses ácidas.

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