quinta-feira, 14 de julho de 2022

Broker (2022)


Depois de vencer a Palma de Ouro e chegar ao Oscar com Assunto de Família (2018), o japonês Hirokazu Koreeda começou a sondar projetos internacionais, tendo se aventurado primeiro na França com La Vérité (2019), ao lado das grandes estrelas do país, Juliette Binoche e Catherine Deneuve, e agora retorna com Broker/브로커 realizado na Coréia do Sul, aonde pode finalmente trabalhar com o astro Song Kang-ho (Parasita), cuja parceria saiu recompensada com a Palma de Melhor Performance Masculina na nova edição do Festival de Cannes, e novamente se reuniu com Bae Doona, com quem tinha filmado Air Doll (2009). 


Broker tem sido promovido como um road movie, o que seria uma bela reformulação temática do Koreeda mas é essencialmente mais um sub-produto desse cinema de mazelas sociais no Oriente, tendo os mencionados, Parasita e Assunto de Família como grandes representantes atuais. Desde as primeiras cenas, apresentando seus personagens sob uma noite chuvosa enquanto a jovem So-young (a cantora IU/Lee Ji Eun) carrega um bebê para deixar na portinhola da "Baby Box" de uma igreja, é difícil não associar diretamente aos filmes citados pela familiaridade visual no espaço urbano mostrado. 


Tudo neste início parece nos preparar para um soco no estômago, ao falar dessa característica cultural no abandono de recém-nascidos e adentrar um esquema de tráfico de bebês, realizado pelo simpático dono de uma lavanderia, Sang-hyeon (Kang-ho) e o amigo Dong-soo (Gang Dong-won), quando logo são descobertos por So-young, que reconsidera a decisão de abandonar o bebê, Woosung, ou ao menos planeja garantir que ele tenha um bom lar antes de se despedir, enquanto duas desconhecidas, Soo-jin (Doona) e Lee (Lee Joo-young) os seguem por razões ainda desconhecidas. Um corpo descoberto num quarto de hotel e mais figuras desconhecidas interessadas em adquirir a criança vão surgindo no decorrer, amontoando nossas suspeitas. 


Koreeda sempre tocou em feridas do desamparo social, como por exemplo em Ninguém Pode Saber (2004), que também retratava uma cruel realidade envolvendo crianças, mas com o grupo de personagens em Broker, há pouca evolução no campo afetivo ou na análise social, preferindo avançar numa trama criminal que repete o esquema visto em Assunto... sofrendo de uma nítida falta de argumentos. Há sim um investimento na imersão enérgica de momentos que pareçam um recorte honesto dessa realidade brutal entre o trio que se destina rumo a venda de Woosung, que ainda acolhem pelo caminho o adorável Hae-jin (Lim Seung-soo), que é pura energia funcionando melhor dentro desse esquema de encenação naturalista. Lee e a jovem mãe trocam confidencialidades e um breve afeto, enquanto Sang-hyeon assume a função paterna por todos.


Tendo temas tão sensíveis em volta da política e cultura sul-coreana, Koreeda não poderia ser anti-partidário e mesmo nas boas intenções há quem possa encontrar brechas para criticar a exploração das precárias condições que são impostas à So-Young. Confesso ter a vontade de querer contestar o prêmio de Kang-ho, pelo tanto que acaba sendo desprovido de um real protagonismo aqui, que some de cena na grande solução final do roteiro. Esse desfecho talvez simplifique bem o que é Broker ao todo na minha percepção: um filme incapaz de gerar de forma autêntica sentimentos, e engajar socialmente.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Nobody's Hero (2022)

Alain Guiraudie é o cineasta francês que no mesmo ano de Azul é a Cor Mais Quente (2013), lançou o ainda mais polêmico e explícito, Um Estranho no Lago, que permanece como o seu filme mais conhecido pelo público. Aquele thriller homoérotico ambientado numa praia nudista servia bem de introdução ao cinema provocativo de Guiraudie, que muito provavelmente é o grande autor ainda em atividade a representar a complexidade em torno da sexualidade no cinema, que nunca se resume a isso mas é o grande motor em Os Fortes Não Descansam (2003) e O Rei da Fuga (2009). É necessário começar o texto de forma didática e revente assim porque não é simples a tarefa de descrever o que ele filma, e não dá simplesmente afirmar como é mais um diretor do "nonsense", especialmente em seu mais novo lançamento, Nobody's Hero/Viens je t'emméne que abriu a Mostra Panorama no Festival de Berlim este ano, que tem muito a dizer quanto mais se empurra para a beira do absurdo. 


Nele tudo se tem início a partir do encontro repentino entre Médéric (Jean-Charles Clichet) e Isadora (Noémie Lvovsky) pelas ruas de Clermont-Ferrand durante a época de Natal, a mulher é comprometida e não enxerga o matrimônio como um impedimento para sua vida sexual compulsiva, que a leva a se prostituir mesmo com o desaprovamento do marido, Gérard (Renaud Rutten) em um hotel discreto, para aonde ela segue com Médéric depois. O encontro sexual, no entanto, é frustrado pela notícia de um ataque terrorista na cidade, mas instigado a saber mais sobre a misteriosa mulher, o homem começa a se meter em problemas por ela e o jovem marroquino, Selim (Iliès Kadri) que vive desabrigado nos arredores do condomínio e que passa a abrigar em seu apartamento, e é quem Médéric suspeita estar envolvido no recente ataque. 


O rapaz também é motivo de intriga com os vizinhos, Mr. Coq (Michel Masiero) e Mr. Alaoui (Philippe Fretun) atentos aos movimentos dos imigrantes que consideram marginais em suas ruas. Também é motivo de interesse a garota auxiliar do hotel, Charléne (Miveck Packa). Todas esses encontros e circunstâncias vão formando uma leve bola de caos, quanto mais ele se intromete e faz com que esses estranhos participem da sua vida. Que ainda tem mais na cola, Florence (Doria Tillier).


É assim que Guiraudie vai deturpando os códigos morais e civis para debater sobre a civilidade nessas pessoas, com um problema de condomínio ilustra o problema de toda a nação francesa, atualmente em um termo indefinido com a xenofobia e os crescentes casos de terrorismo. O sexo explícito aparece em menores doses mas não deixa de ser encenado de uma forma próxima e desajustada, tendo uma leitura sobre sexualidade em segundo plano, como consequência narrativa que não deixa de ser complexa, quanto mais vemos das complicações românticas do protagonista. Para um diretor conhecido em concentrar seus personagens em regiões isoladas no campo, pode vir a parecer tarde demais para se mover até centros populares, quanto mais se inserir em discussões tão problemáticas, que pode serem vistas com um fácil tom errôneo. Mas quando não foi assim também? Tudo é uma grande provocação a caretice do público atual, não querendo se validar meramente como cinema político, mas sim aproveitando o atual cenário própicio para aplicar sua acidez e nos deconcertar de formas novas ironizando a sociedade. 

Assista Nobody's Hero (com legenda provisória) aqui.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Dashcam (2022)

Quando Rob Savage obteve popularidade mundial em 2020, ao lançar Host, um filme declarado como "um produto da pandemia" por utilizar o formato Screenlife, se concentrando em um chat de reunião no Zoom, mas com grandes suspeitas de ter sido realizado antes, ficou claro como o diretor britânico é muito perspicaz em entender e saber como usar um momento propício a seu favor. Dashcam é resultado de um contrato com os estúdios Blumhouse, que parece ter optado por nem levá-lo as grandes redes de cinema, sendo lançado muito tempo após a estréia no Festival de Toronto em 2021, devido uma polêmica por conter um certo teor ofensivo, e ao ver agora é fácil concluir como é uma tarefa difícil para ele encontrar algum público.


Dashcam gira em torno de Annie Hardy, uma personalidade popular de música que interpreta si mesma, agindo como uma vigilante noturna e quebrando as normas de restrição do covid-19 para produzir conteúdo ao seu blog de livestream, que funciona como um espaço de total liberdade de expressão, utilizando a dashcam, o equipamento de câmera instalado no retrovisor de seu carro, embora para poder cobrir a ação Savage utilize recursos de vídeo paralelos. 


Hardy se porta desafiando padrões como uma representante anti-vacina, sendo irreverente e boca suja, e por diversas vezes irritante para aqueles ao redor, em especial ao amigo Stretch (Amar Chadha-Patel) de quem invade a residência, demonstrando noção alguma de modos educados. A personagem de Hardy é o famoso caso de pessoa na hora certa e lugar errado, ao ir parar num estabelecimento para uma entrega de delivery e aceitar por uma quantia de dinheiro transportar de um lugar ao outro uma senhora desconhecida de aparência debilitada, Angela (Angela Enahoro), sem maiores explicações. A partir daí posso afirmar que Dashcam é um filme de gênero por usar a constante tensão como combustível, mas que se trata muito menos de uma história de horror, quanto mais as lacunas e suspeitas vão se esclarecendo e percebemos o quanto Savage está nos tirando da narrativa convencional do gênero, e mais interessado nas provocações onde Annie é a grande estrela por ser uma persona non-grata, e o plot de horror apenas a consequência dessa brincadeira, o que rende algo extremamente divertido. 


Sendo o Screenlife uma sub-categoria do Found Footage, as fragilidades são as mesmas características do outro gênero da câmera em primeira pessoa, como o exagero gráfico nos momentos finais e a resolução frustrante de seu mistério. Mas é extremamente eficiente como um trem descarrilhado em direção a adrenalina e humor, que SIM, tendem a ser ofensivos ao cenário atual, mesmo que a Blumhouse tente se esquivar da conversa, mas é por possuir essa leveza inconsequente que se torna muito satisfatório, e como os seus minutos de créditos finais com o beatbox de insultos feitos por Annie a todos executivos e colaboradores, é PRECISO saber como não o levar a sério.

Assista Dashcam aqui.